Primeiro dia.
Ele está lá parado há um bom tempo, rodeado de balões e letras que formam 'feliz aniversário'. Seu rosto, pálido, ficou olhando para a parede sem fazer nada.
Fiquei olhando para ele até que meu ônibus passasse. Embarquei ouvindo sua esposa chamar seu nome.
Ele ainda estava na mesma posição quando passamos por eles.
Aquele dia já estava estranho e essa coisa com o vizinho só piorou. O ônibus que sempre ia cheio, naquela segunda, estava quase vazio.
Estranho o número de mensagens chegando no grupo da empresa, ainda não eram nem sete horas e eles já estavam mandando muitas mensagens.
Volto à leitura do meu livro, ignorando tudo à minha volta.
Quase na metade do caminho, paramos. No meio da estrada, tinha um ônibus queimando, e algumas pessoas estavam em volta dele. Como meu vizinho, elas estão lá, paradas, olhando o ônibus queimar. O motorista, depois de parar, decide descer e ver o que aconteceu. Alguns passageiros descem com ele. Aquela situação toda era muito estranha, ninguém fica assim sem nenhuma reação ao ver algo pegar fogo. Permaneço ali olhando; meu celular começa a tocar novamente, mensagens começam a chegar também no meu telefone particular.
Meu irmão começou a me ligar, assim como minha tia, prima, mãe.
Olho pela janela e vejo que o motorista tenta falar com o outro motorista, mas nada; ele permanece ali.
Parado.
Como meu vizinho.
Estranho pra caramba!
Volto para o meu lugar e tento ligar para casa e nada; a chamada não termina. Na verdade, ela nem se completa.
Olho em volta e vejo que muitos que desceram do ônibus também estão olhando para os celulares. Alguns dizem que deve ser algum problema nas operadoras.
Em todas?
Abro as mensagens do grupo de trabalho e me deparo com vários vídeos, pessoas gritando, correndo, áudios delas pedindo ajuda. Coordenadores nos mandando ficar em casa.
Que merda é essa?!
Sem entender nada, tento ligar novamente, mas a linha fica muda.
De novo.
Volto a olhar pela janela e vejo que os outros ainda tentam falar com aqueles passageiros parados; tento mandar uma mensagem para meu irmão e vejo que ele tinha me mandado um
"volta para casa".
Aos poucos, todos voltam para o ônibus, tentando usar o telefone, mas sem sucesso.
O ônibus queimando está deixando um rastro de fumaça negra, tossindo ajudo os outros a fecharem as janelas. Não consigo mais ver o motorista e ele não volta com os outros.
Silenciosamente, com minha mochila nas costas, saio do ônibus procurando por ele.
Os outros estão começando a ficar nervosos, sem entender o que está acontecendo.
Estamos parados a 20 minutos do terminal de onde saímos, com uma fumaça negra dominando o lugar.
Onde está o motorista?
Círculo o ônibus em chamas ouvindo barulhos estranhos.
Rumores como se alguém estivesse mastigando algo.
Tento chegar mais perto da parte traseira do ônibus, mas a fumaça e o calor são quase insuportáveis.
Dali consigo ouvir melhor, os rumores de alguém mastigando, engatinhado me aproximo dos
rumores, dos gemidos de dor.
Ao me aproximar lentamente começo a reconhecer os barulhos, são de alguém que mastiga.
De trás de uma roda os vejo.
O motorista caído ao lado do ônibus e uma mulher puxando uma de suas tripas. Coberta de sangue, ela puxava, mastigava e engolia.
Puxava, mastigava e engolia.
Com lágrimas nos olhos e em pânico, cubro minha boca com as mãos e saio correndo dali, tentando não fazer barulho.
Chego ao lado do outro ônibus e vomito meu café da manhã.
Ela estava devorando-o.
Porra! Ela estava comendo as tripas dele.
Continuo vomitando e chorando até que um homem desce do ônibus e vem me ver.
Lentamente, ele me pergunta o que houve.
Não consigo dizer.
Ainda não consigo dizer.
Lentamente, aponto para a traseira do ônibus. O homem vai até lá, mas não fico para ver sua reação. Volto para o ônibus e me sento, chorando, tentando processar o que vi.
Outros passageiros me perguntam o que aconteceu, mas não digo nada. Estou tremendo e acho que tenho vômito em meus sapatos.
Outros descem e veem o que eu vi, escuto o grito deles. Cubro meus ouvidos em pânico enquanto os que ficaram no ônibus descem para ver o que acontecia.
Os gritos deles parecem ter 'despertado' os outros, que começam a atacar as pessoas.
Respiro fundo e saio do ônibus. Corro pela estrada sem fazer barulho e deixo para trás os gritos e o sangue. Corro até que meus pulmões queimem. Em minhas mãos, meu celular vibra e o nome de meu irmão aparece.
Assim que atendo, a única coisa que ouço é ele me gritando 'volta'... 'morte'... 'algo estranho'... 'vizinhos'... A ligação cai.
Em pânico, sento-me na estrada; não sinto minhas pernas, não respiro bem.
Tento me acalmar.
Ainda consigo ver a fumaça do ônibus; com minha cabeça entre as pernas, tento respiro fundo. Bebo a água que trouxe e decido ir para casa caminhando.
Não estou longe, jogo algumas coisas da mochila fora e a deixo mais leve. Continuo pela estrada principal sem olhar para trás e tento não prestar atenção nos gritos.
Não paro ao ver outros ônibus parados e nem quando vejo um carro com pessoas conversando a sua volta.
Não falo com ninguém.
Não paro. Continuo a caminhar.
Preciso voltar para casa! Eu só preciso voltar para casa.
Continuo em linha reta até ver o terminal de onde saí a algum tempo atrás.
A cada passo que dou, ouço os gritos e antes de entrar lá, um ônibus passa por mim, com
pessoas gritando e batendo nos vidros desesperadas.
Não me aproximo, continuo a caminhar evitando o lugar. Até a minha casa são mais 30 minutos, passando por ruas que sei terem poucas pessoas.
Só mais um pouco. Em casa eu estarei segura!
Outras pessoas correm pelas ruas, evitando as que estão paradas olhando para o nada. Mas seus gritos parecem despertar eles, fazendo com que mais e mais ataquem os que estão correndo.
Entro em uma rua e corro até não ouvir nada; tento usar meu celular e nada. Nem o da empresa funciona.
Gritos saem de algumas casas, mas eu não paro.
Finjo não os ouvir.
A cada passo que dou, a vontade de vomitar aumenta; minhas lágrimas me impedem de ver direito, mas não paro. Ainda não posso parar.
Vejo pessoas curiosas indo em direção aos gritos nas casas, mas não digo nada, algumas tentam falar comigo, mas não respondo; continuo caminhando, evitando os rumores, evitando as pessoas.
Eu só preciso chegar em casa. É o que repito a mim mesma.
Continuo andando.
Cansada, suada e quase sem ar, ando pelos últimos metros que me separam do meu lugar seguro.
Não vejo ninguém pelas ruas do bairro está tudo silencioso; aqui e ali vejo alguns vizinhos olhando pelos vidros de suas janelas fechadas.
Tem bolo espalhado pela rua.
Bolo e o que parece ser sangue seco.
Silenciosa continuo a caminhar pela rua.
Estou tão perto.
Vejo meu irmão sacudir suas mãos na janela, apontando para o portão.
Em silêncio, subo os degraus e antes de entrar, vejo os filhos do vizinho.
Com seus chapéus de aniversário, de mãos dadas, olhando para o nada com a boca e seus pequenos corpinhos sujos de sangue, as tripas de um deles está pendurada para fora.
Fecho o portão.
Caio na varanda, exausta.
Choro olhando para eles.
Meu irmão me puxa para dentro de casa.
Consegui.
Estou viva
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