CULPA
Ele está ali novamente, sentado no primeiro banco da igreja com toda sua família.
Me pergunto se a mulher dele nunca viu nada de diferente em algum dos seus comportamentos. Em algum momento ele já foi agressivo com ela? E com seus filhos? Começo o sermão de hoje falando sobre arrependimento, sobre se responsabilizar sobre seus atos, sobre o perdão. Quero alcançar ele de algum jeito, mas quando nossos olhos se encontram sou recebido por um sorriso sarcástico.
Por que ele veio me contar o que fez com ela? Ele não procura o perdão, provavelmente quer me torturar, ele sabe que não posso dizer nada, que a única coisa que posso fazer e aconselhar e pedir que ele faça a coisa certa, que se entregue as autoridades. Termino a missa e algumas famílias vem me cumprimentar, ele está ali com a sua, rindo com a filha em seus braços. Como ele pode tirar a filha de outro pai sendo ele também um pai? Falo com eles e abençoo as filhas deles, a mulher sorri feliz ao seu lado.
E a família da mulher que ele matou? Como deve estar nesse momento a mãe daquela adolescente? Comendo sozinha em casa ainda esperando que a sua filha chegue sã e salva em casa? Tento novamente falar com ele sobre o que ele me falou no confessionário, mas ele ri e vai embora com sua família. É dia de passar na sorveteria e ele já estava atrasado.
A única coisa que posso fazer e observar e rezar para que ele mude de opinião e se entregue a polícia. Joe fez isso de novo, ainda consigo ouvir sua voz me contando o que aconteceu com a pobre Camila, como ele pode? Ela só tinha dezoito anos e uma vida toda pela frente. Como ele pode olhar para a mãe dela? Ajudar sua família a procurar por ela? Distribuir panfletos, ajudar a mãe falando com os vizinhos, como ele pode ser assim? Tento dormir a noite, mas só consigo me lembrar de suas palavras, de como ele a torturou, de como ele abusou daquela pobre alma.
Seria culpa minha?
Eu sabia do que ele era capaz, sabia o que ele havia feito com a outra mulher. A noite suas palavras vêm a minha mente como em um sonho, consigo ouvir seu relato de novo e de novo como se estivesse ouvindo um disco que repetia a mesma história. Cada vez que fecho os olhos ela está lá, me perguntando por que deixei que isso acontecesse com ela.
Não foi culpa minha.
O que eu poderia fazer?
Confessar algo para mim é como confessar a Deus. Joe confiou em mim.
E eu?
Aí está ela novamente.
Eu mereci isso? Padre você imagina como eu sofri? O senhor sabe o que ele fazia comigo noite após noite? Claro que sim! Ele te contou tudo, te disse nos mínimos detalhes o que fazia comigo. Ele te contou que eu ainda estava viva quando meus pais começaram a me procurar? Eu não podia fazer nada, uma confissão é sagrada. É mesmo? Ou isso é o que você está se repetindo para conseguir dormir a noite?
"Me deixa em Paz Camila! Não sou culpado pelo que aconteceu com você!" grito para o nada. Está tudo em minha mente. Me sento em uma cadeira e respiro fundo, estou ficando louco, é a falta de sono! Sim é isso que está me fazendo ver Camila, ela está morta! Joe a matou! Sim, isso não foi culpa minha.
O que eu poderia ter feito? Uma confissão é sagrada, eu nunca poderia ter falado o que ouvi para ninguém!
Se isso faz você se sentir melhor padre continue pensando assim...
Camila sussurra em meus ouvidos palavras raivosas dia e noite. Não durmo mais, meus sermões são desconexos e as pessoas já estão sussurrando que estou doente. Joe continua com aquele sorriso. Todos os domingos ele está lá, com a sua família perfeita sentados no primeiro banco da igreja.
Por que Camila não aparece para ele? Afinal ele a matou, a torturou e a perseguiu. Eu não fiz nada!
Isso mesmo padre, você não fez nada! Preferiu deixá-lo livre, o que eu fiz para merecer isso? Você se lembra de como eu adorava cantar no coral da igreja? De como você ficava ali observando e sorrindo para nós? Padre você se lembra de como eu era A-DO-RA-VEL?
"PARA! PARA! PARA! ME DEIXA EM PAZ CAMILA!!!!" grito.
“Padre?!” olho para uma das novas freiras que chegaram à igreja, ela é jovem. Como a pequena Camila. Será que ela canta bem também?
“O senhor está bem?” que voz doce e suave ela tem.
Tento sorrir, mas acabo observando minha imagem no espelho atras dela, olheiras profundas estão debaixo de meus olhos sem vida, estou pálido como se o sol não tocasse minha pele por vários dias. Camila, o que você está fazendo comigo?
“Padre?” ela me chama novamente, mas continuo caminhando pelo corredor deixando-a sozinha enquanto sussurro que nunca foi culpa minha.
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Camila está sempre comigo, onde quer que eu olhe ela está ali, me julgado, me culpando pela sua morte. Suspeito que a polícia ache que eu a matei, observo a policial sair da igreja com a freira que me abordou no corredor, antes de ir ela me fez varias perguntas, quase como se suspeitasse de algo.
Em todo o momento, durante aquela conversa, ouvi as risadas de Camila, ela ria e repetia que eu deveria pagar pelo que aconteceu com ela. Que eu deveria contar toda a verdade.
Que verdade? Eu prometi diante de Deus que nunca quebraria meus votos.
Mas você já quebrou a promessa outras vezes...
Agora ela me lembra dos meus pecados, me faz sonhar com eles as poucas vezes que consigo dormir. A policial ainda conversa com a jovem... elas olham para mim algumas vezes e voltam a sussurrar coisas, me julgando. Em todos os lugares as pessoas não fazem outra coisa a não ser me julgar.
Elas provavelmente sabem o que você fez...
Eu não fiz nada! Eu não fiz nada! Nada! Volto para meus aposentos ouvindo as risadas dela. Por que ela não me deixa em paz?
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Joe está novamente com sua família no primeiro banco da igreja, sorrindo para suas filhas, conversando com sua jovem esposa. Hoje a policial também está aqui, sentada no banco olhando para mim.
Tento me concentrar no sermão, mas Camila não deixa, repete várias e várias vezes que sou culpado pelo que aconteceu com ela.
"EU NAO FIZ NADA!!!!!!!!" grito bem no meio do sermão. Todos estão olhando para mim.
Espantados.
Surpresos.
Outros simplesmente estão rindo de mim já com seus celulares em mãos.
Eu não estou bem, deixo o púlpito e saio da igreja. Preciso respirar. Fecho aquelas portas deixando as risadas de Camila para trás.
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A policial vem atras de mim falando algo sobre eu ter um álibi, ela quer saber onde estava quando Camila e a outra garota foram mortas.
Porque suspeitam de mim?
Quem não suspeitaria? Estou doente, não durmo mais, as freiras não me deixam mais celebrar aos domingos, ouvi que chamaram outro padre para ver como estou.
Olho para a policial que parece estar sem paciência diante do meu silencio. Que vontade que tenho de contar o que sei, me livrar do peso que está em meu coração.
Acha que Deus vai te perdoar padre?
Camila não me abandona nem um segundo, ela está lá quando durmo, quando acordo, me julgando rindo de mim em todos os momentos.
A policial continua tentando falar comigo, que mulher irritante! Será que ela não vê que não estou bem? Aquela jovem freira, Leticia, leva aquela mulher para longe de mim, sussurra que não é um bom momento, que eu não ando bem, que boa menina. Ela também está no coral, ouvi ela cantando naquela manhã. Que voz melodiosa ela tinha.
Ela vai ser a próxima?
Olho para minha imagem refletida no espelho surpreso com os meus próprios pensamentos, não, eu não fiz nada, Joe é o culpado. Sim ele fez tudo isso. Conquistou a confiança dessas garotas com sua postura de bom homem e seu sorriso galanteador, provavelmente ofereceu uma carona para elas e as levou para longe da cidade, ele deve ter um lugar onde as esconde. Joe é o culpado de tudo! Eu não fiz nada... eu sou um homem de Deus... eu sou um bom homem...
A jovem Letícia me trouxe um chá novamente, ela sempre sorri dizendo que uma xicara de chá quente a noite faz bem.
Para mim não.
Tenho pesadelo terríveis a noite, Camila não me abandona nem nos meus sonhos, ela está sempre lá, como se estivesse ao meu lado da cama sussurrando coisas horríveis em meus ouvidos. Acordo gritando no meio da noite.
Eu não fiz nada... sou um homem de Deus... um bom homem...
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Cinco da manhã e ela está aqui novamente ao meu lado, me atormentando.
Padre, você se lembra do dia em que acharam meu corpo jogado naquele terreno? Se lembra de como você consolou minha mãe? De como disse que eu estava em um lugar melhor. Você ainda acha que eu estou em um lugar melhor? Sim, você está. Mesmo sem as minhas tripas?
Ela ri.
Não celebro mais durante os domingos, o novo padre está no púlpito falando sobre perdão e arrependimento. Joe falou com ele? Acho que não, ele ainda está calmo, tranquilo, olhando para todos com bondade e alegria.
Ele conversa comigo todas as tardes, ele ainda acredita que posso melhorar, temos falado sobre visitas médicas. Estou enlouquecendo ou simplesmente a minha culpa está me deixando assim?
A nova freira deixa mais uma xícara de chá para mim ao lado da minha cama. Não a bebo e pela primeira vez em dias durmo bem.
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Leticia canta no coral da igreja todos os domingos de manhã, a voz dela é calma e me tranquiliza, ela me lembra os dias em que observava Camila cantar, elas são tão parecidas que as vezes acho que estou olhando para ela.
A mãe de Camila também vem escutar ela todos os domingos, ela também deve se lembrar da filha.
Você ainda não percebeu que ele também vem ouvi-la cantar?
Ela está certa, ele também está lá, ao lado da porta, observando-a.
Não acha que está na hora de ligar para aquela policial que as vezes visita você?
Não posso, não posso.
Então o próximo corpo que vão encontrar vai ser o dela...
Naquela noite Leticia também me trouxe o chá, sentou-se a meu lado, conversou comigo, me falou sobre o tempo.
Eu não saio mais da igreja, caminho pelos corredores como um fantasma, conversando com uma pessoa que sou o único a ver. O jovem padre ainda me visita, mas ela vem todas as noites com um sorriso sincero e histórias sobre pessoas que não vejo mais.
Não recebo mais ninguém.
Não quero ver aquele sorriso maldito ou ouvir aquela voz que me chama.
Em uma noite pior que as outras, sonho com um assassinato que eu nunca presenciei.
Ela corria gritando e pedindo por ajuda.
Ele ria enquanto a estripava.
Acordo várias e várias vezes suando frio com a voz dela em minha mente gritando que era tudo culpa minha. Depois daquela noite passei a ver Letícia, coberta de sangue com uma faca em suas mãos e um sorriso em seu rosto.
Uma xicara de chá.
Vozes em minha cabeça.
Risadas e mais risadas.
Agora as duas me assombram.
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A jovem Leticia não me visita a alguns dias, ela não visita mais ninguém e sua voz não pode mais ser ouvida na igreja.
Eu avisei padre, avisei que ela seria a próxima, que ele iria atras dela.
Você deixou isso me acontecer?
Leticia acompanha Camila agora, chorando, me acusando com apenas um olhar. O que você vai fazer agora? e suas vozes se confundem em minha mente.
Me arrasto pelos corredores até o confessionário, vi Joé entrando na igreja logo cedo. Provavelmente ele vai contar o que fez a Leticia para o novo padre. Será que ele se arrepende? Como ele dorme? Estou com a faca que encontrei em meus aposentos, hoje vou acabar com isso.
De onde vem a faca? Não sei. Não penso sobre isso. Só quero acabar com tudo. Ele é o demônio, um homem assim merece a morte, merece o mesmo que fez com àquelas pobres jovens.
Escuto seus passos e suas risadas pelo corredor, o monstro está feliz, provavelmente está pensando que vai se safar de tudo isso como nos outros casos.
Eu vou impedir que isso aconteça novamente!
Vai mesmo?
“Me perdoe padre porque eu pequei... hoje fui.... conheci ela....” essa voz! Me falando sobre trivialidades, é assim que começa, pequenas confissões, casos de traição e depois vem os assassinatos, o terror.
Você deveria escutar o que ele diz...
Não! Ele só quer me confundir... me perdoe meu Deus... eu sou um bom homem... me perdoe..., mas tenho que fazer isso!
Abro a pequena porta que nos separa, com a faca em minhas mãos, ele não vai sair daqui eu não vou deixar!
Você vai ter coragem de fazer isso? Ele não é fraco como a gente...
Não escute ela, não escute ninguém.
“Padre Jhonas?” ele me olha confuso, por que ele está confuso?
“Você não vai mais ferir mais ninguém!” grito avançando.
“O que? Do que você está falando?” ele caminha para trás, tentando colocar uma certa distância entre nós.
Não vai funcionar, eu tranquei a porta, aqui não tem janelas. Mas porque ele parece tão confuso?
Talvez porque ele não saiba do que você está falando. Já pensou nisso padre?
Ele é o culpado! Só está tentando me confundir, ele vai tentar de tudo para me fazer desisti.
A risada delas me acompanha enquanto me lanço contra ele acertando a faca em um de seus braços, ele grita e acerto de novo dessa vez em seu estomago.
Parece que você sabe usar uma faca muito bem padre.
Camila está ali me observando. Por que ela está me julgando? Estou me vingando por ela!
“Por favor padre, eu não fiz nada!” volto a olhar para Joe e da sua boca sai um líquido vermelho, ele tosse como se estivesse se afogando.
Dou mais uma facada.
Outra.
É o certo a se fazer. Sinto seu sangue em meu rosto, quente e viscoso. A vida já abandonou seu corpo, mas contínuo esfaqueando-o, deixando a raiva tomar meu corpo, não paro nem quando escuto os gritos.
Alguém me tira dali.
Tentam socorrer aquele monstro, mas já sei que não vão conseguir. Seu intestino está por toda sala. Estripei ele.
Como ele fazia com elas.
Tem certeza de que era ele padre?
Camila sussurra em meus ouvidos.
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