TRADIÇÕES
Me olho no espelho pela última vez antes de sair.
Hoje é um dia importante.
Com meu vestido branco e algumas flores nos meus cabelos longos, giro feliz diante do
espelho.
É tempo de colheita.
É tempo de mostrar nossos respeitos aos Deuses, agradecer pelas bênçãos destes últimos anos e pedir boas colheitas futuras. É tempo de festa. Saio de casa e encontro várias pessoas se preparando para as festividades. As casas, os jardins e as estradas estão cobertos de flores e fitas coloridas. Crianças correm por todos os lados brincando felizes.
Para a maioria delas, é a primeira Colheita. Me lembro da minha primeira colheita. Minha mãe segurava minha mão e ria feliz com suas amigas no meio da praça do vilarejo. Foi um momento mágico. Me lembro de Papai ajudando na construção da grande fogueira com os outros homens, lembro-me do barulho dos martelos e das vozes deles gritando e rindo. Naquele ano, a Virgem da Colheita foi a irmã mais nova de minha mãe, tia Lucy. Mamãe estava muito orgulhosa dela, eu conseguia ver isso em seu olhar enquanto colocava as flores nos cabelos de Lucy. Ela sussurrava algo em seus ouvidos, e minha tia ria.
Me lembro do orgulho que senti quando Lucy escolheu minha coroa de flores, minha irmã me abraçava e minha mãe ria extasiada. Papai me olhou nos olhos e sorriu orgulhoso.
Eu seria a próxima Virgem da Colheita.
Tia Lucy não sabia que as flores eram minhas, e eu com a minha tenra idade ainda não entendia direito o que isso significava, mas me lembro de estar feliz. No final das comemorações, Lucy veio até mim, suas mãos estavam sujas e seu vestido florido manchado, mas ela me sorria feliz. Ela me abraçou fortemente e disse o quanto estava orgulhosa de mim.
Eu não havia fechado meus olhos nem uma vez.
Não gritei de medo.
Não chorei como minha irmã.
Meus olhos nunca saíram da tia Lucy.
Deixo as memórias do passado para trás e volto ao caminho até a praça. Observo os homens terminando a grande fogueira. Várias meninas correm em volta de uma mesa com as flores que eu escolherei, cantam felizes esperando que a coroa delas seja escolhida. Corro até elas, e juntas cantamos uma antiga canção. Algumas mulheres cantam conosco enquanto arrumam a mesa com vários pães e bolos. Entre as risadas, ouço um sino tocar.
É o momento de começar. Me junto aos anciãos e abraço cada um deles. Olho as pessoas se juntarem na praça, famílias inteiras vêm festejar. Tia Lucy me olha orgulhosa em meu vestido florido. O mesmo que ela havia usado. Seu marido a abraça e pisca para mim. A pequena Penélope, filha deles, grita chorando.
Vou até a mesa das flores e deixo minha intuição me guiar, essa era uma escolha importante. Todos ficam em silêncio esperando, como se todos prendessem a respiração. Escolho uma simples coroa de flores violetas, a mais simples, porém a mais bonita. Ouço uma jovem fazer um pequeno barulho de surpresa.
Sorrindo olho para a pequena garotinha tímida que abraça sua mãe enquanto todos riem. Com um pequeno gesto de minhas mãos, a chamo até mim. Ela corre e me abraça, beijo seus cabelos desejando que na próxima colheita ela traga muitas bênçãos para nosso vilarejo.
Ela volta até sua família feliz enquanto todos batem palmas e cantam. A música volta a tocar e todos comem e bebem felizes. Meu pai para bem na minha frente e sorri para mim. Ele está com as roupas brancas típicas que todos os homens usam nesse período.
"Você está linda hoje, minha pequena menininha," ele me dá um leve beijo na testa, pega as flores das minhas mãos e coloca elas em meus cabelos.
"Você fez uma ótima escolha," ele olha para a pequena Penélope, que agora brinca feliz com as outras meninas. "A pequenina vai trazer muitas bênçãos como você hoje, minha criança," ele me abraça, e eu respiro o seu perfume. Papai sempre me apoiou em todas as minhas decisões, junto com minha mãe. Eles sempre me disseram que assim como Lucy e as outras antes dela, eu também seria abençoada.
"Obrigada, pai," ele me deixa ir falar com os outros enquanto vai dar as felicitações para Penélope.
Olho para o grande homem de palha. Alguns homens colocam os primeiros grãos da nossa colheita em seu interior. Eles serão queimados, e sua essência será oferecida aos Deuses. Falo com todos, e quando estamos prontos, começo a falar:
"Hoje estamos aqui para mais um ritual de boa colheita," olho para cada uma das pessoas que estão sentadas nas primeiras cadeiras. Todos sorriem felizes, abraçam seus filhos, comem e bebem.
"Hoje é um dia de festa, um dia para agradecer aos Deuses pelas muitas bênçãos que recebemos ao longo desses dez anos. Tivemos ótimas colheitas e muitas bênçãos em cada vida hoje aqui presente. Somos todos filhos dos Deuses, e como bons filhos, temos que agradecer por tudo que eles nos proporcionam." Olho para tia Lucy com sua pequena filha nos braços. Ela sorri, transmitindo-me força, como sua predecessora fez com ela.
"Enquanto os outros vilarejos abandonam os velhos rituais e são atingidos pelas pragas e doenças, pela fome e morte de seus filhos, nós, que somos fiéis e nunca abandonamos os Deuses, somos recompensados." Observo cada um deles, cada vizinho, cada primo, cada irmão, cada amigo.
"Somos uma grande família e, através dos nossos agradecimentos e ofertas, sempre seremos recompensados com o amor deles." Os homens trazem uma mulher gritando; ela também estava vestida de branco e com flores nos cabelos, mas quase todas haviam caído porque ela gritava e esperneava.
"Hoje oferecemos sangue e grãos," sorrio para a mulher enquanto pego o grande punhal que estava na mesa das flores. Ela me olha com medo, seus olhos cheios de lágrimas imploravam por piedade. Ela nunca entendeu. Seu sacrifício é uma honra.
"Seu sangue vai se espalhar por esta terra e nos trazer ótimas colheitas nos tempos escuros." Ela grita e implora; algumas crianças olham tudo com olhos arregalados, outras choram. A pequena Penélope não tira os olhos de mim. Me aproximo da mulher chorosa e a abraço; sinto suas lágrimas quentes caírem em meus braços.
"Você não entende," passo as mãos pelos seus cabelos. "Hoje você servirá a um propósito muito maior; você se juntará aos Deuses e aos nossos irmãos e irmãs que já partiram." Ela continua chorando. "Você trouxe muito orgulho para sua família, Amélia; eles estão muito orgulhosos de você!" Beijo sua testa. "Eu sinto orgulho de você." Ajudo os homens a levá-la para perto da grande fogueira.
"Te estou implorando, Hanna, não faça isso."
Olho para ela; é como me olhar no espelho. Amélia é minha irmã gêmea, e como família, deveria entender os deveres e as honras que recebemos quando somos escolhidas.
"Você, melhor do que ninguém, deveria entender, Amélia, a honra que é voltar para o lado dos Deuses." Dou um último abraço. Os homens a deixam sentada na base da fogueira.
"Seu sacrifício trará boas colheitas para nossa vila e afastará doenças." Ela olha para mim ainda com os olhos cheios de lágrimas. Olho para as pessoas do vilarejo; estão felizes e empolgadas. Eles entendem; sabem que temos que fazer os sacrifícios. Os filhos que eles dão para os Deuses nos trazem glória.
"O sangue do sacrifício se espalhará por nossas terras e nos trará grandes colheitas. O sangue de uma impura, derramado pelas mãos de uma filha da Deusa, afastará as doenças que afligem os impuros, que afligem aqueles que não acreditam mais nas tradições."
Volto a olhar para Amélia, e ela ainda está sussurrando várias vezes que eu não poderia fazer isso; que somos irmãs. Ela olha em volta, esperando que alguém a ajude a fugir. Ela pode não entender a honra que é servir os Deuses, mas nós sabemos. Ela nos abandonou, mas logo voltará aos braços da Deusa. A filha que volta para casa. Todos nós ouvimos as histórias de como as coisas eram antes que os anciãos começassem com as tradições e os Deuses respondessem aos pedidos deles.
"Deuses, aceitem esse sacrifício," levanto minha voz.
"Pedimos boas colheitas, bênçãos e proteção para todos nós." Ajudo Amélia a se levantar novamente.
Olho para ela.
Ela olha para mim.
Suavemente, enfio a faca em seu estômago; sangue quente cai em minha pele. Ouço os suspiros atrás de mim e vejo a vida sair de seus olhos cheios de lágrimas.
Dou um último beijo em sua testa. "Aceitem esse sangue, esse coração, essa vida," sussurro, deitando o corpo dela na fogueira, sobre os grãos. Toco seu rosto com minhas mãos cheias de seu sangue. Faça uma boa viagem, irmã. Amo muito você.
Acendo a grande fogueira e ouço as pessoas gritarem felizes.
As festividades continuam.
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